11 Jul 2024

Maria José Ferreira: O BioShoes4All é o maior projeto de sempre da nossa indústria

Entrevista com Maria José Ferreira

Diretora de Investigação do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP) e responsável pelo projeto BioShoes4all - que tem como objetivo tornar a indústria portuguesa de calçado uma referência no desenvolvimento de soluções sustentáveis. Maria José Ferreira é um nome incontornável quando o assunto é sustentabilidade.

Todos os anos são produzidos mais de 20 mil milhões de sapatos a nível internacional. Praticamente 90% desse calçado é produzido na Ásia.  Já chegamos ao limite?

A questão de saber se atingimos um limite é complexa e multifacetada. Entre 1992 e 2022 a população mundial cresceu de cerca de 5 para 8 biliões de pessoas, mas a produção mundial de calçado aumentou a um ritmo ainda superior, e quase triplicou atingindo os 24 biliões de pares/ano.

Trata-se de um volume impressionante de calçado produzido anualmente, no entanto, admitindo uma distribuição de consumo uniforme, 3 pares por pessoa/ano poderia até considerar-se razoável. Contudo, na realidade verifica-se que a Europa e a América do Norte com apenas cerca de 14% da população mundial consomem cerca de 30% do produzido (2022), logo cerca de 6 pares por pessoa por ano. Neste enquadramento, se a média desejada por toda a população for similar à destes blocos, a produção poderá crescer.

Estes volumes de produção e consumo colocam o setor do calçado sob intenso escrutínio sobretudo devido ao uso intensivo dos recursos do planeta e aos potenciais impactos ambientais, estando nomeadamente na Europa prevista regulamentação para promover a criação de produtos suportados por ecodesign, duráveis, reparáveis, com menor pegada ambiental, livres de substâncias perigosas, rastreáveis e circulares.

Adicionalmente, verifica-se um apelo generalizado para um consumo mais responsável, recomendando-se a aposta em produtos de maior qualidade, confortáveis, com estética que conjugue a moda com a intemporalidade, produzidos localmente de modo inclusivo. E a adoção de novas abordagens incluindo a manutenção, limpeza, reparação e partilha para prolongar a vida útil do calçado antes de o encaminhar para reciclagem.

Todas estas medidas devem contribuir para conter o consumo excessivo e promover uma alteração do tipo de produtos consumidos, o que resultará em oportunidades para a produção de calçado na Europa.

Há muito "folclore”, e mesmo "greenwashing”, quando se aborda o tema da sustentabilidade. O que deve ser valorizado do seu ponto de visa?
A verdade, a transparência. Nos últimos anos na indústria da moda, e no calçado em particular, a generalidade das empresas e marcas, refere que os seus produtos são mais sustentáveis, nomeadamente que integram material reciclado, ou possuem menor pegada de carbono, ou são biodegradáveis, entre outros. Mas, raramente apresentam evidências, isto é, testes ou certificações, emitidas por entidades independentes, que comprovem esses atributos. Acresce que, estas validações também se estão a tornar um negócio e devemos trabalhar para que não contribuam para o greenwashing. Os testes e/ou validações deveriam ser efetuadas seguindo protocolos definidos em nomas nacionais, europeias (EN) ou internacionais (ISO, OCDE).

É fundamental que os produtos identifiquem a origem geográfica e a composição dos materiais e do produto e indiquem ao cliente fatores distintivos, nomeadamente em termos de impacto ambiental, durabilidade/qualidade, conforto, como fazer a limpeza e manutenção, potencial de reciclagem, e que comprovem o que é reivindicado. Um modo simples é incluir um QR code ou etiqueta NFC que permita aos clientes e consumidores aceder à informação.

Reportando menor pegada ecológica, ou ambiental ou de carbono, torna-se necessário proceder ao seu cálculo usando métodos bem definidos como o é o caso da metodologia Europeia PEF (Product Environmental Footprint). Se for indicado que é de elevada qualidade, pode constar um relatório que comprove nomeadamente a resistência ao escorregamento e à abrasão, flexão e descolagem. Do mesmo modo, referindo conforto superior, reportar a capacidade de amortecimento, retorno de energia ou respirabilidade/permeabilidade ao vapor de água, entre outros.  O CTCP (Centro Tecnológico do Calçado de Portugal) está capacitado para trabalhar com as empresas em todas estas vertentes com o objetivo de contribuir para que sejam líderes na promoção de calçado e marroquinaria sustentável.

Num mundo em mudança, que oportunidades existem para a indústria portuguesa de calçado?
Portugal sabe produzir calçado, muito bem. Nas últimas décadas apostou estrategicamente e com sucesso na inovação, no design, na capacitação dos recursos humanos, na modernização do seu parque industrial e na internacionalização. No passado, o calçado português tomou estas decisões estratégicas para ultrapassar os desafios da liberalização dos mercados e a saída de marcas que produziam grandes séries em Portugal. Uma indústria que produzia grandes séries de calçado azul, castanho ou preto tornou-se colorida, arrojada, "sexy” e isto permitiu aumentar o valor acrescentado do calçado e das exportações. Os desafios atuais são diferentes, e estamos mais preparados, mas não vamos viver dos louros e sucessos do passado.

De facto, o mundo encontra-se em mudança acelerada. Há, no entanto, indicadores seguros e que são oportunidades para a nossa indústria. Os clientes e os reguladores dos países para os quais dirigimos as nossas exportações querem produtos visualmente apelativos, baseados em materiais e processos que minimizam as substâncias perigosas. Produtos que respeitam o meio ambiente, produzidos localmente por pessoas com boas condições de trabalho e bons salários, e possuem um preço de venda contido e adequado.

Portugal deve por isso apostar e ser líder no desenvolvimento de materiais, calçado, marroquinaria e tecnologias verdadeiramente/comprovadamente sustentáveis, que permitam reduzir a pegada de carbono dos produtos, a água e a energia utilizada por par de calçado produzido. Incorporar materiais renováveis, como o couro, produzidos por energia renovável, aumentar a percentagem de material reciclado por par, entre outros. Uma das vantagens é a nossa indústria integrar de modo harmonioso empresas produtoras de materiais, componentes, equipamentos produtivos, software e calçado e marroquinaria e existir sincronização de interesses de todas para a sustentabilidade.

Uma outra opção segura é focarmos em produtos técnicos, como sejam o calçado de trabalho ou militar. Regem-se por normas claras, e requerem conhecimento de conceção e produção avançada, que as nossas empresas possuem. Acrescem as competências do Centro Tecnológico nestas áreas.

Há também oportunidades associadas aos processos de fabrico, sendo relevante automatizar, organizar, e informatizar operações repetitivas que não acrescentam valor e consomem tempo, por exemplo preenchimento de requisições, controlo de fornecimentos, preenchimento de "exceis”, formulários e relatórios para clientes ou Estado, quase tudo pode ser automatizado/desburocratizado.

Apostar em processos e tecnologias, nomeadamente de injeção, ágeis, materiais expandidos recicláveis, que nos permitam produzir na Europa de modo mundialmente competitivo. Reduzir as operações de preparação, de retoques e correção de erros, de acabamento e limpeza. Todas estas oportunidades são reais, ao alcance das empresas do cluster do calçado e contribuirão para a sustentabilidade económica, imprescindível para a social e ambiental.

As alterações climáticas são uma realidade? Pode a indústria portuguesa de calçado dar um contributo?
A crise climática e energética são realidades incontornáveis que estão a impactar a vida da população mundial, e muitas das nossas decisões podem dar um contributo para a sua contenção, tendo a indústria portuguesa de calçado capacidade e vontade de construir uma nova realidade, assente numa economia renovável, sustentável e circular.
Quando produzimos um calçado de qualidade que vai perdurar como novo por 6, 7 ou mais anos, quando optamos por matérias renováveis que o nosso planeta pode produzir e regenerar continuamente, quando optamos por reciclar e circular os materiais de produção ou calçado usado, quando em cada uma das nossas decisões de produção e consumo consideramos o seu impacto ambiental e social, podemos dar um contributo inestimável para a sustentabilidade da humanidade e a neutralidade carbónica.

De que forma o projeto Bioshoes4All poderá mudar a indústria de calçado em Portugal?
O BioShoes4All envolve 70 parceiros, 20 entidades de investigação e desenvolvimento e 50 empresas. São empresas representativas de toda a cadeia, incluindo empresas de calçado e marroquinaria, curtume, têxteis revestidos, palmilhas, componentes, solas, software, equipamentos produtivos, reciclagem, retalho. Desde micro a grandes empresas, todas orientadas para concretizar uma mudança radical ao nível da sustentabilidade dos materiais, produtos químicos, processos de fabrico, modelos de negócio e produtos finais de calçado e marroquinaria.
O BioShoes4All é o maior projeto de sempre da nossa indústria e o maior investimento em investigação, desenvolvimento, inovação, e capacitação realizado num curto espaço de tempo, tornado possível pelo programa Português de Recuperação e Resiliência e o Next Generation EU.
Pelo modo como foi organizado, e está a ser concretizado, intervindo em todas as áreas estratégicas para a sustentabilidade dos produtos e das empresas do cluster, com forte envolvimento de todos os parceiros industriais e de IDT, coordenação do CTCP e liderança pela APICCAPS, o projeto apresenta um potencial relevante de transformação do cluster do calçado português e de ter impacto internacional.  

Como serão os novos produtos e materiais do futuro?
Ao nível do calçado e marroquinara, criam-se conceitos e produtos inovadores, produtos de moda, casual, ou trabalho, para todas as faixas etárias, desde criança a seniores. Os novos produtos são criados e refinados com base em estudos para medir e reduzir a sua pegada ambiental e de carbono, e atuar ao nível do desenvolvimento e seleção dos materiais e processos.

São produtos leves, apelativos, mas com poucos materiais diferentes para potenciar a sua produção ágil e reciclagem. Os materiais e produtos integram subprodutos da alimentação humana ou animal incluindo de arroz, cereais, caroço de azeitona, castanha, casca de mexilhão, podas de videira, algas, entre outros, que reforçam ou materializam novos materiais, palmilhas, reforços ou solas. Valorizam resíduos das indústrias agroflorestais nacionais como sejam extratos de casca de pinheiro, café ou oliveira para curtir peles. Reciclam resíduos de produção de couro, componentes e calçado para fazer novos couros, componentes, incluindo testeiras, contrafortes, solas e calçado.

Os novos produtos de calçado e marroquinaria apresentam durabilidade/qualidade, menor pegada ambiental medida seguindo o método europeu PEF, ou são mais renováveis, reparáveis e/ou recicláveis/circulares. Os processos de produção são redesenhados, humanizados e ecoeficientes, minimizam-se os produtos químicos utilizados, a energia e os efluentes e resíduos de produção.

Os modelos de negócio estão a ser desenvolvidos para potenciar nichos de produtos de elevado valor acrescentado, produtos feitos em materiais que permitem a sua reparação ou reciclagem, processos de produção inovadores na Europa como a vulcanização direta passarão a ser uma realidade, sempre tendo como premissa aumentar o tempo de uso/vida dos produtos, a sua manutenção ou valorização no fim da vida útil.

O projeto intervém ao nível de todos os materiais potencialmente utilizados no calçado promovendo a criação de novas moléculas ou fórmulas para produção de couros, adesivos, borracha, poliuretano ou EVA, e processos de fabrico com enfase para a sua sustentabilidade global e para o fecho do ciclo de produção. O mote é sermos inovadores, inclusivos, eficientes e "desperdício zero”. Os novos couros, palmilhas ou solas serão "até 100%” biológicos/renováveis, reciclados ou recicláveis e com funcionalidades superiores flexíveis, resistentes ao desgaste ou escorregamento, entre outros.

Aposta-se em tecnologias para produzir estes biocouros, bioplásticos ou bioborrachas e bio componentes. O projeto contribui para a implementação na Europa dos primeiros sistemas para produção de componentes e calçado em materiais termoplásticos expandidos e recicláveis. Trata-se de espumas de TPU, EVA, entre outros, que suportam a "nossa caminhada” para economia circular e podem contribuir para a produção de maiores séries de componentes e calçado na Europa a um preço competitivo.

Realizam-se investimentos no desenvolvimento e implementação de tecnologias e processos de produção e negócio disruptivos, incluindo novos sistemas de preparação/corte dos materiais, equipamentos ecoeficientes para secagem de colas aquosas, sistemas de controlo da qualidade.

Aposta-se na rastreabilidade, desenvolvendo software que para além de suportar o conhecimento do que é o produto, desde a origem das matérias, até a produção do calçado, poderá permitir ao cliente saber onde foi produzido, o seu impacto ambiental e como o pode reparar, ou reciclar. Estas digitalização/informatização está também ao serviço das empresas para desburocratizar os processos internos, a gestão da informação com os fornecedores e clientes. Tudo está a ser repensado e simplificado.

Em paralelo, o projeto está a promover a partilha e transferência do conhecimento gerado para todo o cluster. Todos os meses são realizadas ações de disseminação, capacitação ou promoção no CTCP, junto de empresas, escolas e nossos parceiros em todo o mundo pela APICCAPS e empresas do projeto. O BioShoes4All é um projeto para todos, todos estão convidados a participar e a beneficiar. O objetivo é potenciar uma espiral de inovação que transforme todo o cluster e permita que seja globalmente reconhecido como líder na criação e produção de produtos sustentáveis.

Fonte: In, APICCAPS
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