24 Jun 2024

Entrevista a Miguel Cardoso Pinto: Indústria de calçado está a entrar num novo ciclo

Miguel Cardoso Pinto coordenou o estudo da EY Parthenon "Os caminhos da indústria do calçado português em direção ao luxo”. Em entrevista ao Jornal da APICCAPS, avalia a atualidade do setor e aponta perspetivas para o futuro.
 
No Estudo de Mercado sobre o setor de calçado de luxo que a EY Parthenon realizou, recentemente, para a indústria de calçado, efetuaram um diagnostico exaustivo à realidade da indústria de calçado me Portugal. Em que fase de desenvolvimento se encontra agora a nossa indústria?

A história da indústria do calçado em Portugal é marcada pela evolução significativa da sua proposta de valor. Nos anos 1980 e 1990, o país consolidou-se como produtor de calçado de baixo custo. No entanto, com a entrada da China e outros países asiáticos na economia global no final do século, a indústria nacional enfrentou uma séria ameaça. A deslocalização da produção de calçado Low-cost e Mass-market para o Oriente, devido às vantagens nos custos de produção, forçou Portugal a reposicionar-se estrategicamente. O setor inovou, tornando-se um produtor de referência no segmento Premium, destacando-se pela qualidade da sua produção e aproveitando a maior rentabilidade associada a produtos de maior valor acrescentado.
Atualmente, o setor do calçado em Portugal enfrenta um novo paradigma desafiante, caracterizado pelo aumento dos custos de produção e pela estagnação do preço médio de venda. Assim, acreditamos estar a entrar num novo ciclo onde será necessário criar um novo ponto de vista próprio sobre o futuro se quisermos entregar expectativas de crescimento e de diferenciação. Assim sendo a redefinição estratégica dos diferentes atores nesta fase será o primeiro passo critico para que Portugal possa conseguir enfrentar os desafios presentes e capturar o maior valor possível do futuro que teremos pela frente.

Defendem que "o aumento dos custos e a intensificação da concorrência ameaçam o setor do calçado” e que "esta situação obrigará a uma revisão do posicionamento do setor”. De forma sucinta, que oportunidades de crescimento existem para as nossas empresas?
Apesar dos desafios, as empresas do setor do calçado em Portugal têm várias oportunidades de crescimento. A sustentabilidade financeira pode ser alcançada através da redução dos custos. Para tal, a consolidação do mercado, por meio de fusões e aquisições, poderá trazer maiores economias de escala, e a inovação, quer no produto quer nos processos industriais, poderá contribuir para a redução dos custos unitários de produção.
Em alternativa, o aumento do preço médio de venda também poderá constituir uma abordagem importante. Existem três principais oportunidades nesse sentido: participar em mais fases da cadeia de valor para agregar maior valor acrescentado, entrar em novos mercados com maior poder de compra, e produzir para segmentos de maior valor acrescentado, à semelhança do que já se sucedeu no passado.
É importante reconhecer que as empresas do setor do calçado são heterogéneas, com diferentes condições e níveis de maturidade, e essas variáveis deverão ser consideradas na definição das suas estratégias.

A EY Parthenon sugere, no estudo, que uma das vias para o progresso da indústria poderá passar pela diminuição dos custos de produção. Como poderá ser isso feito?
No estudo, foram propostos vários caminhos para reduzir os custos de produção. Um deles envolve a consolidação do mercado, através da integração de vários players, de modo a gerar maiores economias de escala. Outra abordagem visa o aumento da produtividade das empresas por meio da implementação de novos processos industriais. Uma terceira via consiste na otimização dos custos de mão-de-obra, subcontratando algumas fases da produção para países com menores custos laborais. Por fim, a redução dos custos pode ser alcançada através da inovação nos produtos, como forma de tornar a sua produção menos onerosa.

Do vosso ponto de vista, qual é o espaço onde o setor português de calçado se distingue da concorrência no valor entregue aos clientes?
O estudo concluiu que o segmento de luxo, tradicionalmente dominado pelos produtores italianos, representa uma oportunidade de crescimento atrativa para o setor do calçado nacional. Focar a produção neste segmento permitirá aproveitar as vantagens comparativas do setor em Portugal e aumentar o preço de venda do calçado nacional, contribuindo assim para a sua sustentabilidade financeira.

Considera que existem condições para que a indústria portuguesa de calçado se possa afirmar como uma alternativa valida à italiana nos segmentos de maior valor acrescentado?
Portugal reúne as condições necessárias para tirar partido da oportunidade que o luxo representa.
Considerando as necessidades dos clientes, a oferta dos concorrentes e as capacidades da indústria nacional, Portugal tem uma vantagem em termos de custo de produção em comparação com os concorrentes italianos, para um nível de qualidade, serviço e reputação semelhante. Assim, encontra-se bem posicionado para conquistar quota de mercado junto das marcas de luxo que procuram um produto de elevada qualidade, mas para quem os preços italianos se revelam incompatíveis.

Quais são as fraquezas da indústria italiana que deveremos explorar?
Em primeiro lugar, é importante reconhecer que Itália é uma referência global na produção de calçado, particularmente no segmento de luxo. Destaca-se pela qualidade da sua produção e pela presença de um cluster bastante consolidado, que conferem ao país a sua reputação de excelência.
Dito isto, a principal fraqueza do setor italiano é o seu custo de produção, que se traduz num preço de venda muito elevado e que inviabiliza a produção de calçado para os segmentos que não os do luxo. Assim, existe um número crescente de marcas para quem produzir em Itália é inviável. Na última década, várias marcas de luxo, dos segmentos a que chamamos Entry to Luxury (PVP entre €300 e €600) e Aspirational Luxury (PVP entre €600 e €1000), têm sofrido com a subida galopante dos preços no país. Esta situação representa uma oportunidade para Portugal, que se poderá posicionar como uma alternativa mais viável, sem prejuízo da qualidade produtiva.

Além dos custos de produção e da concorrência crescente, Itália enfrenta uma escassez de recursos humanos. A mão-de-obra italiana está a envelhecer e o setor tem dificuldade em atrair jovens para trabalhar nas fábricas. Portugal pode novamente beneficiar desta tendência, surgindo como uma alternativa para a falta de capacidade produtiva em Itália.

Como se deverá processar a evolução da indústria portuguesa do calçado em direção ao luxo?
A indústria portuguesa de calçado já parte de uma base sólida, destacando-se pela qualidade dos seus produtos, preços competitivos, nível de serviço e práticas de ESG. Contudo, é importante lembrar que as empresas do setor não são homogéneas, apresentando condições diversas. Assim, algumas estarão mais preparadas para trabalhar com marcas de luxo do que outras. De um modo geral, a evolução da indústria portuguesa em direção ao luxo passa por adquirir competências em três níveis diferentes.

O primeiro nível envolve a consolidação da capacidade e qualidade produtiva, garantindo que atendem às exigências do segmento de luxo. As marcas de luxo requerem altos padrões de qualidade e agilidade produtiva, bem como confidencialidade, cumprimento das normas ESG e apresentação geral das fábricas. Assim, é crucial que as empresas invistam na robustez dos seus processos industriais para assegurar que cumprem com esses critérios rigorosos.

O segundo nível é o desenvolvimento da atividade comercial. Este nível passa pelo reinventar dos departamentos comerciais e por melhorar os serviços de client care, proporcionando um acompanhamento permanente e personalizado.

Por fim, o terceiro nível é o da inovação, apostando em designs inovadores, novas matérias-primas e novos processos de produção.
Este caminho de evolução será gradual. Inicialmente, as empresas que ainda não têm experiência e cultura de luxo deverão começar por "entrar no cluster italiano", estabelecendo relações diretas com fornecedores de marcas de luxo. Numa segunda fase, estas empresas trabalharão diretamente com as marcas de luxo. Finalmente, na terceira fase, o objetivo é a criação de marcas nacionais de calçado de luxo, na expectativa de que estas funcionem como locomotivas da marca Made in Portugal.
Fonte: In, Apiccaps
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